Eliane Brum
em seu blog revista ÉPOCA, publicado em 17.7.2013
Jornalista, escritora e documentarista.
elianebrum@uol.com.br / @brumelianebrum
O Programa Mais Médicos, lançado pela presidente Dilma Rousseff, não
vai resolver o problema do Sistema Único de Saúde (SUS). Mas pode, sim,
ser parte da solução. Ou alguém realmente acredita que colocar mais
médicos nos lugares carentes do Brasil pode fazer mal para a população?
Sério que, de boa-fé, alguém acredita nisso? A veemência dos protestos
contra o projeto de ampliar o curso de medicina de seis para oito anos e
tornar esses dois últimos anos um trabalho remunerado para o SUS revela
muito. Especialmente o quanto é abissal a fratura social no Brasil. E o
quanto a parte mais rica é cega para a possibilidade de fazer a sua
parte para diminuir uma desigualdade que deveria nos envergonhar todos
os dias – e que, no caso da saúde, mata os mais frágeis e os mais
pobres.
Para resolver o problema do SUS é preciso assumir, de fato, o
compromisso com a saúde pública gratuita e universal. O que significa
investir muito mais recursos. Em 2011, segundo dados da Organização
Mundial da Saúde (OMS), o Brasil gastou US$477,00 per capita em saúde.
Menos do que vizinhos como Uruguai (US$817,80) e Argentina (US$869,40),
por exemplo. E quase seis vezes menos do que o Reino Unido
(US$2.747,00), cujo sistema de saúde tem sido apresentado como
referência do projeto do governo. Hoje, falta dinheiro e falta gestão
eficiente. Sem dinheiro e sem eficiência, duas obviedades, não se
constrói um sistema decente. Mas, para investir mais dinheiro no SUS, é
preciso tocar também em questões sensíveis, como o financiamento da
saúde privada. Falta dinheiro no SUS também – mas não só – porque o
Estado tem subsidiado a saúde dos mais ricos via renúncia fiscal.
Um recente estudo do Ipea (leia aqui)
mostrou que, em 2011, último ano avaliado, quase R$16 bilhões deixaram
de ser arrecadados pelo governo, por dedução no imposto de renda de
pessoas físicas e jurídicas e desoneração fiscal da indústria
farmacêutica e de hospitais filantrópicos. O que é, de fato, renúncia
fiscal? Um pagamento feito pelo Estado: ele não desembolsa, mas paga, ao
deixar de receber. Assim, quase R$16 bilhões, o equivalente a 22,5% do
gasto público federal em saúde, deixaram de ser investidos no SUS para
serem transferidos para o setor privado, numa espécie de distribuição de
renda para o topo da pirâmide. Para ter uma ideia do impacto, é mais do
que os R$13 bilhões que o ministro da Saúde, Alexandre Padilha, afirma
que o governo está investindo em unidades básicas de saúde,
pronto-atendimento e hospitais. Não é à toa que, entre 2003 e 2011, o
faturamento do mercado dos planos de saúde quase dobrou e o lucro
líquido cresceu mais de duas vezes e meia acima da inflação.
O governo tem estimulado a população – e também os empregadores – a
investir em saúde privada. Um plano de saúde privado tornou-se uma marca
de ascensão social. A “classe C” ou “nova classe média” tem sido vítima
de planos de saúde mequetrefes que, na hora de maior necessidade,
deixam as pessoas desprotegidas. Como muitos já sentiram na pele, quando
a coisa realmente aperta, quando a doença é séria e requer recursos e
intervenções de ponta, quem vai resolver não é a rede privada, mas o
SUS, porque uma parte significativa dos planos não cobre os exames e
tratamentos mais caros.
Para que a solução seja estrutural – e não cosmética – é preciso
acabar com as distorções e fortalecer o SUS. Sem dinheiro, o SUS vai
sendo sucateado e se torna o destino apenas dos mais pobres e com menos
instrumentos para reivindicar seus direitos. Assustada com a
precarização do SUS, a classe média se sacrifica para pagar um plano
privado, que tem sempre muitas letras miúdas. Os trabalhadores
organizados incluem saúde privada na pauta sindical, afastando-se da
luta do SUS. Quem tem mais poder de pressão para pressionar o Estado por
saúde pública de qualidade, portanto, encontra saídas individuais – que
muitas vezes vão se mostrar pífias na hora da urgência – ou saídas
coletivas, mas para grupos específicos, no caso dos empregados com
planos empresariais.
Enquanto sobrar distorções e faltar dinheiro, o SUS não vai melhorar.
Não vai mesmo. Neste sentido, tem razão quem afirma que o Programa Mais
Médicos é demagogia. Mas apenas em parte.
Acrescentar dois anos ao curso de medicina e tornar esses dois
últimos anos um trabalho remunerado no SUS, uma das mudanças previstas
para iniciar em 2015, pode ser um aprendizado. E rico. Não só da prática
médica como da realidade do país e da sua população, o que não pode
fazer mal a alguém que pretenda ser um bom médico. Para que isso
funcione, tanto como formação quanto como atendimento de qualidade à
população, é preciso que exista de fato a supervisão dos professores e
das faculdades. E essa é uma boa causa para as entidades corporativas e
para as escolas de medicina.
Hoje, um dos problemas do SUS é a fragilidade da atenção básica: o
que poderia ser resolvido nos postos de saúde ou pelo médico de família e
que consiste em cerca de 90% dos casos acaba indo sobrecarregar os
hospitais, que deveriam ser acionados apenas para os casos mais graves. A
distorção provoca problemas de atendimento de uma ponta a outra do
sistema. Por outro lado, entre os avanços mais significativos do SUS
está o Programa Saúde da Família (PSF), um dos principais responsáveis,
junto com o Bolsa Família, pela redução da mortalidade infantil no país.
Mas faltam médicos para esse programa. A atuação dos estudantes de
medicina poderá fazer uma enorme diferença. E isso não é pouco num país
em que os filhos dos pobres ainda morrem de diarreia e de doenças já
erradicadas nos países desenvolvidos.
A obrigatoriedade de trabalhar dois anos no SUS tem sido considerada
por alguns setores, como as entidades corporativas, uma violação dos
direitos individuais do estudante de medicina. Será que não poderia ser
vista, além de um aprendizado, também como uma contrapartida,
especialmente para quem estudou em universidades públicas ou foi
beneficiado com bolsas do Prouni? O Estado, o que equivale a dizer toda a
população brasileira, incluindo os que hoje não têm acesso à saúde pela
precariedade do SUS, financia os estudos desses estudantes. Não seria
lógico e mesmo ético que, ao final do curso, os estudantes devolvessem
uma mínima parte desse investimento à sociedade? Para os estudantes das
escolas privadas, o projeto prevê a liberação do pagamento das
mensalidades nestes dois últimos anos. Mas sempre vale a pena lembrar
que também há financiamento público das particulares, na forma de uma
série de mecanismos, como renúncia fiscal para as filantrópicas e para
as que aderiram ao Prouni.
Os estudantes de medicina serão remunerados pelo trabalho e pelo
aprendizado. O valor mensal da bolsa ainda não está definido, mas a
imprensa divulgou que será algo entre R$3 mil e R$8 mil. Ainda que seja o
menor valor, que outra categoria no Brasil pode sonhar em ganhar isso
antes mesmo de se formar? E mesmo depois de formado? Por que, então, uma
resistência tão grande?
Por causa do abismo. A maioria dos estudantes de medicina vem das
classes mais abastadas, como mostrou a Folha de S. Paulo de 13/7: na
Unesp (Universidade Estadual Paulista), apenas 2% cursaram colégio
público, contra 40% no geral; na USP (Universidade de São Paulo), 20%
dos estudantes têm renda familiar superior a R$20 mil, não há negros na
turma que ingressou em 2013. Historicamente, a elite brasileira não se
vê como parte da construção de um país mais igualitário. Pelos motivos
óbvios – e porque está acostumada a receber, não a dar. Assim, ter seus
estudos financiados pelo conjunto da população brasileira é interpretado
como parte dos seus direitos – não como algo que pressupõe também um
dever ou uma contrapartida. Dever e contrapartida, como se sabe, são
para os outros.
Não fosse esse olhar sobre si e sobre seu lugar no país, seria
plausível que trabalhar os dois últimos anos do curso no SUS pudesse ser
uma boa notícia para quem escolheu ser médico. Fosse até desejável.
Primeiro, porque está ajudando a levar saúde a uma população que não
tem. E, neste sentido, pode fazer a diferença, algumas vezes entre viver
e morrer. Segundo, por participar da construção de um país mais justo, o
que implica deveres ainda maiores a quem recebeu mais. Receber mais –
melhores escolas, melhor saúde, melhores oportunidades – não significa
que tenha de continuar recebendo mais, mas que precisa dar mais, já que a
responsabilidade com quem recebeu menos se torna ainda maior. Terceiro,
porque é inestimável a oportunidade de conhecer as dores, as
necessidades e as aspirações das porções mais carentes do Brasil, não só
pelo aprendizado médico em si, mas pelo que essa população pode ensinar
sobre um outro viver.
Tornar-se médico – e não apenas um técnico em medicina – não passa
pela capacidade de escutar o outro como alguém que tem algo a dizer não
apenas sobre seus sintomas, mas sobre uma visão de mundo singular e uma
interpretação complexa da vida?
Ao ler a maioria das críticas sobre o programa, o que chama a atenção
é a impossibilidade de seus autores se verem como parte da construção
de um SUS mais forte e eficiente, o que significa ser parte da
construção de um Brasil melhor para todos – e não só para uma minoria.
No geral, o que se revela nitidamente é um olhar de fora, como se tudo
tivesse que estar pronto, em perfeitas condições, para que só então o
médico atuasse. Mas é no embate cotidiano, no reconhecimento das
carências e na pressão por mudanças que o SUS será fortalecido, como tem
mostrado em sua prática uma parcela dos médicos tachada – às vezes
pejorativamente – como idealista. Nesse sentido, também os estudantes de
medicina e seus professores farão uma enorme diferença ao estar no
palco onde esse embate é travado. Ao estar presentes – promovendo saúde,
denunciando distorções e pressionando por qualidade – mais do que hoje.
Acredito que a vida da maioria só muda quando os Brasis se aproximam e
se misturam. Tenho esperança de que esse programa – se bem executado, o
que só pode acontecer com a adesão e o compromisso de todos os
envolvidos – possa ser inscrito nesse gesto.
O conjunto de medidas do
“Mais médicos”, que inclui também a atuação de profissionais
estrangeiros em áreas carentes, já promoveu pelo menos um impacto
positivo: colocou o SUS no centro da pauta nacional. Seria tão
importante que os protagonistas desse debate superassem a polarização
inicial entre governo e entidades médicas para fazer uma discussão
séria, com a participação da população, que pudesse resultar no acesso
real da maioria a um sistema de saúde com qualidade. E seria uma pena
que essa oportunidade fosse perdida por interesses imediatos e menos
nobres, tanto de um lado quanto de outro.
É grande o debate sobre se faltam profissionais ou se eles estão mal
distribuídos. O que me parece é que não faltam doutores no Brasil – o
que falta são médicos. São muitos os doutores que ainda nem sequer se
formaram, mas já assumiram o título e o encarnam num sentido profundo. O
SUS terá mais chance quando existirem menos doutores e mais médicos
trilhando o mapa do Brasil.