sábado, 22 de fevereiro de 2014

O terror antiterrorista


CRISTOVAM BUARQUE
22/02/2014 

Em 1964, para “defender as liberdades”, os comandantes militares, aliados a parlamentares, destituíram o presidente eleito. Cinquenta anos depois, um governo eleito, aliado a parlamentares, propõe regras para inibir manifestações de rua sob o argumento de “defender o direito de manifestação”. Para isso, propõe via projeto de lei nº 499 regras que criminalizarão atos cometidos nas manifestações. O senador Pedro Taques apresentou emendas, mas dificilmente mudará o espírito da proposta.

Uma violência durante manifestação poderá ter penalidade maior do que o mesmo crime cometido fora de manifestação. Um assassino frio que mata uma das 50 mil vítimas por ano nas esquinas de nossas cidades será julgado como assassino, mas se a morte decorrer de ações de tumulto durante uma manifestação o autor poderá ser julgado como terrorista.

Um jovem que mobiliza seus amigos para um rolezinho poderá ser considerado terrorista se, durante a manifestação, ocorrer provocação que termine em balbúrdia com depredação de patrimônio. Se der um grito e liberar a raiva da multidão, um passageiro irritado com o péssimo serviço de um ônibus pode ser considerado terrorista, caso ocorra a queima de ônibus em consequência desse grito. Tudo vai depender da interpretação do sistema policial e judiciário.

Os defensores destas propostas dizem que já esperaram demais por uma lei antiterrorista, mas não explicam por que fazê-la neste momento, nem por que de maneira tão ambígua. 
Tudo indica que a pressa decorre do clima de mobili
zação social que o país atravessa. Em vez de entenderem o motivo da insatisfação popular, preferem inibir as manifestações com ameaças de severas penas contra terroristas. Encontraram uma maneira moderna de proibir, de inibir as manifestações.
A proposta é reafirmada graças à hipótese de que o vandalismo teria sido financiado, esquecendo que, no descontentamento atual, não é necessário pagar para que a população deprede ônibus que não a atende. Nas paradas de ônibus, bastam uns gritos para deslanchar movimentos que quase espontaneamente se fazem violentos e poderão condenar pessoas por terrorismo. A sociedade brasileira atravessa uma grave tensão que não é pré-Copa ou pré-eleição, é pós-esgotamento de um modelo social e econômico que ficou velho após 20 anos, com democracia, necessária, mas imperfeita; com o eficiente, mas insuficiente Plano Real; com a generosa, mas não emancipadora Bolsa Família.

O necessário rigor contra o vandalismo exige a aplicação das leis vigentes. A incompetência para impedir os crimes de vândalos não deve ser camuflada, assustando os manifestantes pacíficos. Com exceção dos homens-bomba, os terroristas não vão para as ruas em manifestações, agem à surdina, cometem seus atos clandestinamente. Parece que a intenção dessas propostas não é controlar o terrorismo; é, por um lado, esconder a incompetência para impedir e punir os vândalos e, por outro, aterrorizar os que têm a intenção de ir às manifestações, uma espécie de terror antiterrorista.

domingo, 16 de fevereiro de 2014

As duas faces do domínio do fato


NILO BATISTA

 Professor titular de direito penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Universidade Federal do Rio de Janeiro.


Em corajoso artigo, que analisou percucientemente a argumentação expendida pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ação penal nº 470 (ou do assim chamado “caso mensalão”), Alaor Leite demonstrou como o corpus teórico elaborado em torno do conceito jurídico-penal de domínio do fato foi mal utilizado para estabelecer a responsabilidade de acusados que ocupavam postos de comando, e não para intervir em seu próprio campo dogmático de aplicação, ou seja, na caracterização e atribuição da qualidade de autor[1].


O recente e desventurado episódio que culminou na morte do cinegrafista Santiago Andrade, atingido por um rojão ativado e lançado ao solo por dois manifestantes, também envolverá a teoria do domínio do fato, como veremos em seguida. Mas é quase certo que a imprensa conservadora, tendo adorado a versão abastardada dessa teoria na fundamentação de condenações no “caso mensalão”, agora já não se entusiasmará com ela.
Ao lamentável óbito do desventurado repórter seguiu-se implacável campanha pela imediata prisão dos dois manifestantes. Afiaram-se as facas longas para uma noite agitada. O presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (rectius: Jornalismo Judicante) pedia a condenação dos manifestantes antes mesmo de que as circunstâncias mais elementares do acontecimento estivessem minimamente investigadas. O Presidente do Senado resolveu incluir na pauta de votações uma absolutamente desnecessária (como procurei demonstrar em outra ocasião[2]) lei sobre terrorismo, cuja única utilidade residirá na criminalização de movimentos sociais e reivindicações políticas. O Secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro retornou a sua tese de criminalizar o uso de máscaras, tal como Carlos V fez em Valladolid há quase cinco séculos atrás[3]. Editoriais, entrevistas e artigos, às vezes permeados por um olhar suspeitoso sobre a advocacia dos manifestantes, completam a irrespirável atmosfera do fascismo punitivista operando a todo vapor na grande causa que supõe ter em mãos.

O sistema penal emite sinais de que está disposto a exercer o papel que a mídia – não a Constituição da República – lhe prescreve. A prisão cautelar de um suspeito que se apresentou à polícia, concedeu entrevista à TV Globo – sem qualquer advertência acerca de seu direito de ficar calado, de não produzir prova contra si mesmo – e confessou em rede nacional que passou a outro manifestante o rojão, essa prisão cautelar não tem as orelhas, os olhos e o focinho de uma pena antecipada? E o que dizer da espetaculosa condução coercitiva de familiares do outro indiciado, o que acendeu e colocou no chão o rojão, só explicável como aterrorização para que ele se entregasse logo?
Ao contrário do que pode parecer à primeira vista, a mais delicada questão jurídico-penal que este caso oferece não residirá no dilema dolo eventual/culpa temerária.
O Delegado não hesitou um segundo: indiciou-os por homicídio doloso qualificado pelo meio explosivo (art. 121, § 2º, inc. III CP). Insatisfeito, indiciou-os também pelo crime de perigo comum explosão (art. 251 CP). Ou seja, na opinião da autoridade policial a explosão de fogos de artifício, independentemente de algum dano ou perigo que venha concretamente a infligir a outrem, configura o crime de explosão. No réveillon, teríamos que usar o novo Maracanã como primeira carceragem privada do Rio de Janeiro para atender à demanda.

Suprimir as fronteiras entre o dolo eventual e a culpa temerária é um dos dispositivos mais recorrentes no ativismo punitivista. De modo geral, no noticiário policial e na crônica forense, o “assumir o risco de produzir o resultado” (art. 18, inc. I CP) é interpretado como “correr o risco” (no que o dolo eventual não se diferenciaria em nada da culpa temerária) e não, como preconiza Zaffaroni, “em sua acepção forte de ‘avocar’, ‘apropriar-se’, ‘imputar-se’, a única compatível com a incorporação à vontade realizadora do agente de um efeito possível dos meios por ele escolhidos”[4]. Na verdade, a insustentável opção teórica pelo dolo eventual frequentemente está encobrindo uma opção ideológica pela pena mais grave, ainda que o delito tenha sido mais leve.

A mais delicada questão que o caso oferece, contudo, reside nas dificuldades para imputar objetivamente ao manifestante que acendeu e lançou ao solo o rojão o resultado morte do cinegrafista. Sem dúvida está presente o mais elementar requisito para que a morte seja imputada ao manifestante: o nexo causal entre sua conduta e o resultado, requisitado pelo artigo 13 CP. 

No entanto, se perante uma visão baseada apenas na equivalência dos antecedentes (critério da conditio sine qua non) a conduta do manifestante foi causal, saltam aos olhos certas características do caso que questionam seriamente a imputação do resultado, a partir de um arco doutrinário que se iniciou historicamente com a categoria da causalidade adequada e hoje se espraia nas teorias pós-finalistas de imputação objetiva. Quem deixa de lado as paixões que conduzem o debate público do caso tem que deter-se sobre essas características, que permitem reconhecer ali um curso causal irregular ou inadequado. Arrolemos algumas dessas características. a) Rojões não são propriamente armas (ainda que possam ser utilizados como armas: para ficar num exemplo claro, A obriga B a abrir a boca e nela introduz e acende o artefato); b) rojões são licitamente comercializados, com a única proibição de serem vendidos a adolescentes; c) rojões são licitamente utilizados em muitas situações, dos festejos juninos a comemorações esportivas; d) o trajeto dos bólidos é desorientadamente errático e flexuoso, mesmo se o foguete for apontado para um alvo; e) no caso, o artefato foi, após aceso, colocado no chão, onde se concluiu automaticamente o procedimento de disparo; f) o objetivo do manifestante era que o rojão se deslocasse na direção dos policiais militares[5], não só protegidos por escudos como adestrados para proteger-se, tal como acontecera em tantos conflitos no país: a PM, atrás de seus escudos, disparando armas de fogo municiadas com balas de chumbo ou de borracha e também de gás lacrimogêneo ou de efeito moral, e os manifestantes, atrás de suas máscaras, disparando rojões e mais raramente coquetéis molotov; g) ressalvados acidentes juninos, nos quais preponderam auto-lesões, estamos diante de um raro – quiçá o primeiro – caso de um homicídio doloso cometido com o emprego de um rojão. Pois este curso causal evidentemente irregular ou inadequado está sendo açodada e levianamente equiparado ao homicídio de quem aponta, mira e dispara uma pistola a poucos metros de sua vítima, atingindo-a na cabeça.

Nos crimes comissivos dolosos, é autor quem dispõe do domínio do fato, ou seja, quem decide – solitária ou compartilhadamente com algum coautor – sobre o “se”, o “quando” e o “como” do feito típico. Mas o domínio do fato abrange o domínio do curso causal que produzirá o resultado típico. Quando este curso causal, por sua irregularidade ou inadequação, não é dominável, é desnecessário investigar o domínio do fato, ou seja, a autoria. A dominabilidade do curso causal constitui o pressuposto objetivo do domínio do fato.

O exemplo mais surrado da doutrina[6] (o sobrinho que estimula o tio a passear na montanha onde caem raios) será aqui “carioquizado”. A, sobrinho e herdeiro único de B, observando que em determinada ocasião toda semana explodia um bueiro da Light – que pena que nosso Delegado e nossa mídia estivessem então distraídos, porque ninguém se recorda da notícia de instauração de inquéritos policiais por aquelas explosões – convence-o, com o intuito de matá-lo, que o melhor lugar para assistir ao pôr-do-sol no Arpoador é postado sobre um enorme bueiro na calçada, sucedendo-se uma explosão e a morte de B. Pode este resultado morte ser imputado a A?

A resposta negativa proveio, em primeiro lugar, da teoria da causação adequada, e para além dos trabalhos pioneiros de Von Bar e von Kries, na segunda metade do século XIX, podemos recorrer à filosofia de Spinoza: “chamo de causa adequada aquela cujo efeito pode ser percebido clara e distintamente por ela mesma; chamo de causa inadequada ou parcial, por outro lado, aquela cujo efeito não pode ser compreendido por ela só”[7]. Ao lançamento de um rojão associa-se clara e distintamente como efeito a morte de um homem?! Uma segunda resposta negativa proviria da consideração de que não se poderia reconhecer no sobrinho ambicioso a vontade de matar que é – e no direito penal brasileiro por imposição legal, releia-se o artigo 18, inc. I CP – a essência do dolo, e sim um mero desejo de que o tio morresse. Como lembrava Welzel, um dos inúmeros defensores dessa solução, em direito penal “querer” não significa “querer ter” ou “querer alcançar”, e sim “querer realizar”[8].

Mas a superioridade dogmática da resposta negativa fundada na falta de dominabilidade (por alguns chamada “controlabilidade”, por outros “planejabilidade racional”) parece irrecusável. Diante de um curso causal irregular ou inadequado, insusceptível de domínio, a imputação do resultado ao autor é inadmissível devido – valham-nos palavras de Roxin – “ao caráter objetivamente casual (objektiven Zufälligkeit) do acontecimento”[9]. Se o nosso Delegado resolvesse fazer uma reconstituição do fato – a mídia gostaria muito – poderíamos verificar empiricamente se um rojão lançado naquelas condições, do solo, implica um curso causal dominável. A irrepetibilidade do fato confirmaria seu caráter casual.

Nenhum desses problemas, aqui apressadamente esboçados, se apresentaria na imputação a título de culpa, ou seja, da produção por imprudência de resultado. O autor do crime culposo é apenas um causante (art. 18, inc. II CP) que não observou o cuidado exigível, e não um autor que domina o fato – inclusive o curso causal –, como nos crimes comissivos dolosos. Porém, como os âncoras poderiam encher a boca com a palavra “assassinos”, se o enquadramento jurídico-penal do caso fosse corretamente efetuado?

O domínio do fato, que fez as delícias de muita gente no “caso mensalão”, pode ser agora um artefato teórico perigoso, se lançado ao caso do momento. Até quando as forças políticas progressistas não se darão conta dos perigos que a hipertrofia do sistema penal traz para a democracia? O sistema penal, Presidenta, também pratica, e massivamente, seus mal-feitos...

[1] Leite, Alaor, Domínio do fato, domínio da organização e responsabilidade penal por fatos de terceiros – sobre os conceitos de autor e partícipe na APn 470 do STF, em Revista Brasileira de Ciências Criminais, S. Paulo, ed. RT, v. 106, pp. 47 ss.
[2] Reflexões sobre terrorismos, em Passetti, Edson e Oliveira, Salete (orgs.), Terrorismos, S. Paulo, 2006, ed. PUC-SP, pp. 13 ss.
[3] Novisima Recopilación de las leys de España, liv. XII, tit. XIII, lei I: “Porque del traer de las máscaras resultan grandes males, y se disimulam con ellas y encubren; mandamos, que no haya enmascarados en el reyno, ni vaya con ellas ninguna persona disfrazada ni desconocida”. As penas eram, se se tratasse de “persona baxa”, cem açoites públicos; se se tratasse de “persona noble o honrada”, desterro por seis meses. No uso noturno da máscara, penas dobradas.
[4] Zaffaroni, Raul et al, Direito Penal Brasileiro, Rio, 2010, ed. Revan, v. II, t. I, p. 276.
[5] Não ingressarei no debate, que também interessará ao caso, acerca da aberratio ictus (art. 73 CP).
[6] Não o mais antigo. Em 1894, Thyrén formulava o seguinte exemplo: A, totalmente desajeitado no manejo de armas dispara contra B, querendo matá-lo, a uma distância na qual nem mesmo um campeão de tiro conseguiria acertar, e não obstante B é atingido e morre. Cf. Gimbernat Ordeig, Delitos Cualificados por el resultado y causalidad, Madri, 1966, ed. Reus, p. 39.
[7] Spinosa, Bento de, Ética, trad. T. Tadeu, B. Horizonte, 2007, ed. Autêntica, p. 163.
[8] Welzel, Hans, Das Deutsche Strafrecht, Berlim, 1969, ed. W. de Gruyter, p. 66.
[9] Roxin, Claus, Strafrecht A.T., Munique, 2006, ed. C. H. Beck, v. I.

domingo, 26 de janeiro de 2014

Depois dos rolezinhos

Cristovam Buarque

  Os rolezinhos têm sido tratados como um tema cultural: o porquê de os jovens preferirem agitar shoppings, tirando a tranquilidade dos frequentadores e trabalhadores, em vez de praticarem outras atividades juvenis, tais como namoro, estudo, esporte, arte ou mesmo consumo.

E as soluções propostas têm sido baseadas na esfera legal e policial. Não se viu um debate sobre as causas estruturais que permitiram estas mobilizações aflorarem: os shoppings e a internet.
Os shoppings ofereciam a natural busca de conforto nos trópicos e a necessária proteção em uma sociedade violenta nas ruas, mas também a disfarçada segregação social que caracteriza o Brasil.
Independentemente das causas que levam os jovens aos rolezinhos, eles não ocorreriam sem estes dois fatos irreversíveis na realidade: a existência de shoppings e a disponibilidade da rede social. Sem os shoppings, não haveria como ocupá-los, sem as redes não haveria como fazê-lo.
A sociedade tem três alternativas: conviver com os rolezinhos como uma prática cultural, um carnaval fora de época e lugar; oferecer outras diversões aos jovens; ou buscar solução na explicitação da apartação, com leis que escolham os frequentadores. Esta medida será indecente moralmente e ineficiente socialmente. Ainda se consegue fazer isso nos clubes, condomínios, escolas de qualidade e hospitais caros, mas em shopping será impossível justificar moralmente tal medida. Além disso, as soluções policiais pela força, cercando shoppings, ou pela espionagem, bisbilhotando as redes sociais, serão impossíveis.
Até recentemente, a segregação se fazia com a conivência dócil dos excluídos, como se dizia então: os negros e os pobres sabem seus lugares. Não era necessário, como na África do Sul, explicitar em leis as calçadas e os banheiros só para brancos.
No Brasil, a separação era automática, cada um sabia seu lugar. Com o aumento da população urbana, foi preciso separar fisicamente as classes, nos shoppings e condomínios, com cercas e crachás, mas ainda sem necessidade da explicitação em leis. Antes houve propostas para proibir legalmente a entrada de imigrantes indesejados, mas bastava a apartação descrita no livro: “O que é apartação, o apartheid social brasileiro”, de 1994.
Graças à internet, os rolezinhos desnudam o sistema de apartação implícita, sem leis. Quem não quiser conviver com os shoppings ou com as redes sociais deverá mudar de planeta ou viajar para o passado.
Daqui para frente, os shoppings existirão e terão um papel positivo no conforto social, mas a “guerrilha cibernética” é uma realidade com a qual vamos conviver. Ou assume-se a segregação explícita, ou promove-se a miscigenação social.
E, para isso, o caminho é a escola. A segregação racial se fez nas alcovas, a segregação social se faz nas escolas. O único caminho decente e sustentável para o bom funcionamento dos espaços urbanos é a promoção da escola de qualidade em horário integral, com ofertas culturais para os jovens.

Cristovam Buarque é senador (PDT-DF).

A hora da verdade se aproxima


Não há como ocultar mais que há uma grave crise em gestação no Brasil.

Arnaldo Mourthé*

Vivemos um momento de perplexidade, muitos questionamentos e poucas respostas. Há um descompasso entre o que queremos e o que a sociedade nos oferece. Há mais conflitos que harmonia, mais frustrações que realizações, mais ansiedade que serenidade, mais temores que esperança. Há, portanto, algo grave que nos atinge. Para tornar ainda mais grave esse quadro, há muita mentira e pouca verdade no que nos dizem nossos políticos e nossas “elites”, daí as aspas na última palavra. Vivemos também um momento de grande alienação, proposital, dirigida para esconder-nos a verdade. Há que compreender o que se passa conosco, com nossa sociedade. Que mundo é esse? Por que ele é assim? Para onde ele nos leva? Há alternativa? Qual?
Há uma tendência, dos governos e das “elites”, em buscar soluções a seus problemas com reformas, segundo eles necessárias para enfrentarmos nossas dificuldades. Só que essas reformas estão sempre orientadas para salvar o dinheiro do rico e diminuir o ganho dos que produzem as riquezas, dos que trabalham. São reformas das leis trabalhistas e sociais, reduzindo a segurança dos assalariados e os direitos do cidadão, sempre a favor do empregador e do mandatário. São isenções de impostos que favorecem multinacionais que lucram mais e exportam seus lucros ou, com eles, compram novas empresas aumentando os lucros que são exportados. São reformas para abrir nossas fronteiras, que deveriam defender o que é nosso, para mercadorias e capitais, facilitando sua movimentação a favor do estrangeiro, mais capitalizado e com mais tecnologia, em competição desigual com nossa indústria que, encurralada, aos poucos é transferida para eles. Vendemos todos os dias nosso patrimônio nacional, público ou privado, para equilibrar nossas contas externas e do governo. Esta sofre uma sangria de mais de duzentos bilhões de reais por ano com juros que, por falta de recursos para pagá-los faz aumentar uma dívida que já ultrapassa os dois trilhões de reais, tendo se tornada impagável. Mesmo assim o governo julga correto subsidiar as empresas estrangeiras sediadas no Brasil com isenção de tributos, como fez recentemente com a indústria automobilística.
Esse quadro torna-se mais dramático quando vemos cortes nos serviços públicos para economizar recursos para juros da dívida pública que nenhuma autoridade ousa explicar como e porque surgiu. Sofrem a educação, a saúde, e todos os serviços necessários aos cidadãos. A moradia cada vez representa maior custo para os inquilinos, por seus salários subirem menos que a inflação e os aluguéis muito mais que ela, resultado da especulação gerada pelos dólares das empresas estrangeiras que trazem seus técnicos para ocupar suas novas fábricas, administrar serviços concedidos e explorar nosso petróleo.
Quando a população foi às ruas para denunciar isso, houve um choque que abalou os nervos das autoridades, dos responsáveis pela mídia, dos donos de empresas e investidores. Do susto, não escaparam nem os que se dizem defensores do povo, a “esquerda” organizada em partidos e sindicatos. Isso mostra que a alienação é muito maior do que se poderia imaginar. As multidões ganharem as ruas com reivindicações simples, mas contundentes, como menor tarifa dos transportes e melhores serviços públicos, especialmente de saúde, educação e transporte, surpreendendo os alienados.
A reação do governo federal foi ridícula. Ele esquivou-se do conteúdo das reivindicações e enveredou pelo caminho de seus interesses menores, um plebiscito improvável e uma reforma política questionável, enquanto manteve e ativou suas ações que estão na base do problema, como as privatizações e o culto aos juros da dívida pública. Ele vendeu patrimônios valiosíssimos como o Pré-sal, e privatizou o que pode da infraestrutura dos transportes, reforçando a própria política que é causa da crise que levou a população para as ruas. Agora debate-se com o pífio desempenho de suas contas externas e com sua dívida crescendo, mesmo já sendo impagável.
Mas, esse caos não está apenas no Brasil. Ele está por toda parte. Em toda a América Latina, que sofre dos mesmos males que nós, com as peculiaridades de cada país. Na África, que sangra com seus conflitos armados e com intervenções diretas de países europeus, que padece da fome e de endemias escandalosas como a AIDS. Sua esperança esvai-se com as dificuldades de décadas de uma independência apenas formal. De alguns países da Europa, como Grécia, Espanha, Portugal e Itália, que enredados no euro como moeda comum da União Europeia, não dispõem de tecnologia e produção em escala para competir com as grandes nações.  Eles se atolam no endividamento que submete seus governos, colocados a serviço do capital financeiro e contra seu povo indefeso que já não tem a quem apelar. Se continuarmos assim chegaremos à tirania. Que mundo é esse, meu Deus!
Alguns intelectuais e muitos cidadãos de boa vontade que já sentem a gravidade da situação que vivemos, querem compreender o que aí está para agir na busca de soluções. Há boa vontade, mas soluções não são encontradas. Aqueles mais coerentes trabalham no sentido da resistência às políticas governamentais que geraram as mazelas de hoje e que anunciam a tragédia que será a culminância da crise amanhã. Mas isso é pouco, a crise já faz encolher e degradar nossos serviços públicos e nossa indústria. Ela está provocando a alienação do nosso patrimônio, público e privado, a favor do capital estrangeiro, e inviabiliza uma política de desenvolvimento nacional que melhoraria as condições de vida da nossa gente. Esse quadro de degradação de nossa economia e de nossa sociedade é uma advertência sobre os riscos incalculáveis para nosso país em curto prazo. Só não vê quem não quer. O que fazer? Repare que voltamos às questões do primeiro parágrafo deste artigo.
Há que reforçar nossa visão, como fazem os astrônomos e os bacteriologistas. Não há como ver a olho nu as estrelas além do seu brilho, nem os micro-organismos. Os instrumentos intelectuais que usamos para analisar a sociedade, suas instituições e seu processo histórico são insuficientes para compreendermos, como é necessário, o que se passa no mundo atual. Há uma tendência em pedir esclarecimentos aos economistas sobre isso, quando eles são, no momento, os menos preparados para dar as respostas adequadas. Isso porque, com poucas exceções, eles aprenderam apenas a administrar um sistema econômico que está entrando em colapso. Sem reconhecer isso, que seria admitir falta de senso de sua profissão, não é possível compreender o que se passa. Eles só propõem mudanças formais para tentar evitar o colapso do sistema capitalista, que é inexorável e iminente. É preciso outros instrumentos, que essa economia que anda por aí, para abrir nossa visão. São eles a filosofia, a história, a antropologia, a economia verdadeira, vista como arte de administrar nossos recursos e nossas necessidades. Hoje ela tornou-se apenas a arte de obter lucro para o dono do dinheiro, deixando de servir aos que não vivem do lucro ou da renda. É preciso admitir que, para nosso governo, a democracia é apenas uma questão de formalidade, um cenário para enganar as pessoas. Todas suas decisões são para atender os interesses dos investidores, e não à população. Vivemos sob a ditadura dos investidores.
Há que ampliar nossa visão, nosso horizonte. É preciso compreender por que o capitalismo está na sua fase terminal e, sobretudo, nos preparar para lidar com o seu colapso e pensar na sociedade que queremos a partir daí. Mas, é preciso ainda ter a mente aberta para não nos apressarmos em aceitar qualquer receita já pronta, porque nenhuma delas foi construída levando em consideração o colapso do sistema capitalista, de seu modo de produção e da sociedade que ele moldou para ser o criatório ideal para gerar lucro e obedecer cegamente ao seu Laisser faire, ou seja, a supremacia da liberdade do capitalista sobre todos os demais, destruindo o direito fundamental do homem à liberdade, como enunciado na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão da Revolução Francesa.
O fim do capitalismo não é tão mal quanto alguns temem. Afinal, se ele não vier será muito pior, pois ocorrerá a perda das conquistas sociais arrancadas com muita luta e sacrifício ao longo da história, ou seja, virá o colapso da civilização.
Rio, 25/01/2014

*Autor do livro “História e colapso da civilização”.

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Feliz 2015


Algo vai mal quando um país que precisa enfrentar seus problemas chama de ano da Copa um ano de eleições presidenciais. É o que está a acontecer com o Brasil.
Cinquenta mil brasileiros são assassinados por ano, outros cinquenta mil morrem no trânsito e outros 515 mil estão presos; a droga compromete a vida, a capacidade de trabalho e o futuro de centenas de milhares de nossos jovens; metade da população não tem acesso a água e esgoto; e a economia se desindustrializa.
Quanto ao potencial científico e tecnológico estamos cada dia mais para trás em relação ao resto do mundo; as avenidas estão atravancadas; a educação apresenta um retrato vergonhoso e uma brutal desigualdade; os hospitais públicos estão caóticos; e a natureza está sendo degradada.
No país, temos 13 milhões de adultos que não diferenciam as letras e outros 40 milhões sem capacidade de leitura; a produção não dispõe de logística eficiente para sua distribuição; e cinquenta milhões de brasileiros vivem graças à (felizmente) ajuda do programa Bolsa Família. Apesar disso, em vez de propostas dos presidenciáveis para 2015, estamos preocupados se os estádios da Copa ficarão prontos em 2014.
Isto se explica por nossa paixão pelo futebol, mas também pela descrença com a política, sobretudo porque não há candidatos propondo programas que empolguem a população. Até aqui, todos são tão iguais no comportamento e na falta de propostas diferenciadas. Assim, sobra apenas o grito de Viva a Copa.
Os candidatos ainda não apresentaram propostas para transformar a viciada economia brasileira de exportadora de bens primários, inclusive, alguns de indústria mecânica, em produtora de bens de alta tecnologia; nem mostraram como vão fazer o desenvolvimento ser sustentável ecologicamente e justo socialmente.
Não há propostas para o cerco em que vivem os brasileiros por causa da violência urbana provocada por desesperados com suas pobrezas diante da imensa guerra ao redor, nem para enfrentar a crescente mobilização de desiludidos, movidos pelas redes sociais, para promoverem atos de bloqueio de trânsito, queima de veículos e quebra de vidraças.
Nenhum candidato propôs ações para emancipar nossos pobres da necessidade de ajuda mensal.
Nenhum dos presidenciáveis disse como vai conduzir o Brasil no rumo da erradicação do analfabetismo e como garantir educação de qualidade igual para todos. Nem qual será o salário dos professores ao fim de seu mandato, nem como eles serão selecionados e avaliados.
Nesse quadro de “des-eleição”, o ano de 2014 será o ano da Copa. No primeiro de janeiro de 2015, poderemos acordar com a sensação de que tudo continuará no mesmo rumo de um país que cresce se desfazendo.
Por isso, só nos resta desejar um Feliz 2014 para cada um dos brasileiros e um Feliz 2015 para o Brasil.

Publicado em O GLOBO de 28 de dezembro de 2013
Cristovam Buarque é senador (PDT-DF).

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Tudo resolvido: a raposa cuidará do galinheiro



Arnaldo Mourthé

Faz cinco anos que aventureiros do sistema financeiro americano mergulharam o mundo em uma crise deflagrada pela inadimplência dos tomadores de empréstimos para a compra de casas. Depois da quebra de alguns bancos e trilhões de dólares despejados nas empresas pelo governo americano, para recuperar setores estremecidos pela recessão, a crise teria sido vencida se ela fosse apenas o resultado do evento relatado acima. Mas não é. Ela tem múltiplas influências e se manifesta em cada país de forma diferente, em função de suas peculiaridades.

            Entretanto, sua causa primeira é um fenômeno muito conhecido dos estudiosos da economia, que é cíclico e produzido por uma contradição no modo de produção capitalista, que é relativamente simples. Quando o capitalista coloca à venda uma mercadoria, seu preço (ou valor) é maior que o dinheiro que ela custou, ou seja, que ele devolve ao mercado a título de pagamentos de despesas de produção, incluídos salários e tributos, pois o lucro fica com ele.

Para o escoamento total da mercadoria é preciso recorrer a um valor externo ao sistema, correspondente ao lucro retido, para equilibrar oferta e demanda. Nos primórdios do capitalismo sua produção era pequena comparada com o total produzido pela sociedade. Isso permitia ao capitalista vender parte de sua produção fora do sistema e, assim, reter o lucro. Na medida do crescimento do sistema, os outros modos de produção foram cedendo seu lugar ao capitalismo, obrigando o capitalista a colocar seus lucros no mercado, em despesas pessoais, investindo-o ou emprestando-o ao consumidor. Mas há sempre limites a essas aplicações, especialmente ao empréstimo, pois o tomador acaba por tornar-se inadimplente.

Dessa forma, mais cedo ou mais tarde o sistema entra em crise, que se manifesta periodicamente, gerando ciclos. Podemos citar as mais importantes: 1810, 1847, 1873, 1900, 1907, 1913, 1929, 1957, 1981, 2008. Em toda crise há concentração de capital quando as empresas mais fortes compram as mais fracas. Mas isso não basta para superar a crise. É preciso dissipar a produção, ou seja, criar mercado artificial ou destruir parte dela, eliminando o estoque não vendável. Para isso a solução é o Estado investir em obras que não serão vendidas, ou em “não mercadorias”, enquanto geram demanda pelos recursos colocados no mercado para sua realização. Foi o que Roosevelt fez a partir de 1933. A outra solução, a mais eficaz e radical, é a guerra, que destrói a infraestrutura, imóveis e benfeitorias, e os próprios equipamentos destrutivos, que por seu lado são produzidos por empresas capitalistas e geram lucro. É por isso que temos tido tantas guerras que já mataram mais de 200 milhões de pessoas. Elas são um bom negócio para os grandes capitalistas.

Qualquer dessas soluções produz o endividamento público, que é crescente, na medida em que a economia se agiganta e com ela as crises tornam-se cada vez maiores e mais graves. O endividamento público sistêmico, que antes atingia apenas os países mais industrializados, foi-se alastrando nos países menos capitalizados, onde provocam recessão, desemprego e deterioração dos serviços públicos, o que já está evidente na Europa e já se manifesta setorialmente no Brasil.

A compreensão desse fenômeno, como relatado acima, mostra que durante séculos a burguesia capitalista é produtora das crises e, ao mesmo tempo, os grupos mais ricos dela são os maiores beneficiários das próprias crises que ela produziu, comprando empresas falidas por migalhas e recebendo subsídios dos governos para manter sua produção, sob a alegação de manutenção de empregos e de crescimento da economia, como vem acontecendo no Brasil com a indústria automobilística e outras. Enquanto isso, os serviços públicos são deteriorados, quando poderiam gerar mais empregos e maiores benefícios que essas indústrias.

Mesmo assim os governos brasileiros de Fernando Henrique e Lula entregaram a condução da nossa economia aos grandes grupos financeiros internacionais, levando o Brasil à situação de grandes dificuldades, já evidentes. Mesmo assim, Dilma se lança em um projeto de venda das nossas riquezas como nunca visto, entregando tudo que ainda nos sobrou, sob a alegação de amealhar dinheiro para superar a crise que se agrava. Entretanto, o que ela faz é entregar nossos ativos, que bem administrados nos permitem superar nossas dificuldades, ao mesmo capital financeiro internacional causador de nossos problemas. Busca no nosso inimigo nossa salvação, o que só pode acontecer pela capitulação, ou seja, deixar-se dominar pelo inimigo. É nesse quadro de submissão de seus governos que a sociedade brasileira vai-se degradando, ao ponto de sua polícia espancar os professores de seus jovens e de suas crianças.

É preciso tomar consciência de que não há solução para nossos problemas enquanto estivermos subordinados aos ditames do capital financeiro, que nos impôs o modelo econômico que nos massacra, graças à corrupção e à mais brutal campanha de alienação de nossa população, só menor que a adotada por Hitler. Vender nosso patrimônio nos faz mais fracos enquanto fortalece nosso inimigo que o compra.

Não ao leilão do Pré-sal! Não à privatização dos nossos sistemas de transporte!
Defendamos nossa soberania e a liberdade de nossa gente!

Rio de Janeiro, 03 de outubro de 2013

Arnaldo Mourthé é engenheiro e escritor, tendo exercido cargos no no primeiro escalão na na administração da  do Rio de Janeiro. 


sábado, 21 de setembro de 2013

Estamos cegos

Cristovam Buarque
21/09/13

Os políticos brasileiros estão endividados com os eleitores, sem bússola para o futuro, sitiados pela população e indiferentes diante da indignação.


Endividados pelo passivo acumulado por décadas de descaso com os interesses do povo, por ações, omissões ou incompetência. Depois de mais de cem anos de república, construímos um país rico na renda nacional, mas pobre na renda per capita e injusto na sua distribuição; dividido entre privilegiados e excluídos; ineficiente em seus serviços públicos, como saúde e transporte; atrasado na educação de suas crianças; um país violento, onde 100 mil compatriotas morrem por ano na violência das ruas, assaltos ou acidentes de trânsito. E, não menos grave, uma imensa dívida financeira e moral pelo desvio de bilhões de reais drenados pela corrupção. A dívida vem da insensibilidade social e ética que leva à corrupção nas prioridades da política e no comportamento dos políticos.

A população percebeu esta dívida, indignou-se e está nas ruas cobrando o passivo de décadas, sobretudo dos governos mais recentes, que prometeram pagar a dívida dos anteriores. Esta indignação mantém os políticos sitiados, metafórica e literalmente, pela desconfiança, pelo desprezo, pela ocupação de prédios e ruas. Isto não teria sido possível sem a autonomia das pessoas e movimentos sociais que não precisam mais de líder, partido, sindicato, jornal, rádio ou televisão. Com a democratização propiciada pela internet, a população, especialmente os jovens, é capaz de fazer uma guerrilha cibernética que ocupa pontos estratégicos e inviabiliza o bom funcionamento da sociedade. A dívida e a indignação, por meio da internet, sitiaram os políticos.

Isso seria menos grave se diante deste quadro os políticos tivessem um rumo a apontar, em direção ao futuro distante e ao atendimento das reivindicações imediatas.
Mas além de endividados e sitiados estão perplexos, desarvorados, sem bússola, “desbussolados”. Percebe-se que o rumo do crescimento econômico não é sustentável ecologicamente, não satisfaz ao bem-estar da população, nem engana mais a consciência da opinião pública; as propostas utópicas de direita ou de esquerda faliram; a democracia passa imagem de corrupção; as demandas cresceram e os recursos fiscais ficaram insuficientes.

Este quadro assustador ainda poderia merecer algum otimismo, se apesar de endividados, sitiados e “desbussolados”, os líderes não estivessem indiferentes. Mas a sensação é de que há uma total insensibilidade dos que fazem a política, em relação à dimensão do que acontece nas ruas. Cada manifestação é vista como única, de grupos restritos em ações isoladas; não se percebe que há uma dinâmica e uma lógica, com base em profunda raiva e instrumentos mobilizadores de extrema eficiência
.
Talvez o maior problema é que, além de endividados, “desbussolados”, sitiados e indiferentes, não vemos o tamanho, nem as causas, nem a força da indignação. Estamos cegos.


Cristovam Buarque é senador (PDT-DF)
publicado em O GLOBO 

quinta-feira, 18 de julho de 2013

Ser doutor é mais fácil do que se tornar médico

Eliane Brum
em seu blog revista ÉPOCA, publicado em 17.7.2013
Jornalista, escritora e documentarista.

elianebrum@uol.com.br / @brumelianebrum



O Programa Mais Médicos, lançado pela presidente Dilma Rousseff, não vai resolver o problema do Sistema Único de Saúde (SUS). Mas pode, sim, ser parte da solução. Ou alguém realmente acredita que colocar mais médicos nos lugares carentes do Brasil pode fazer mal para a população? 

Sério que, de boa-fé, alguém acredita nisso? A veemência dos protestos contra o projeto de ampliar o curso de medicina de seis para oito anos e tornar esses dois últimos anos um trabalho remunerado para o SUS revela muito. Especialmente o quanto é abissal a fratura social no Brasil. E o quanto a parte mais rica é cega para a possibilidade de fazer a sua parte para diminuir uma desigualdade que deveria nos envergonhar todos os dias – e que, no caso da saúde, mata os mais frágeis e os mais pobres.

Para resolver o problema do SUS é preciso assumir, de fato, o compromisso com a saúde pública gratuita e universal. O que significa investir muito mais recursos. Em 2011, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil gastou US$477,00 per capita em saúde. Menos do que vizinhos como Uruguai (US$817,80) e Argentina (US$869,40), por exemplo. E quase seis vezes menos do que o Reino Unido (US$2.747,00), cujo sistema de saúde tem sido apresentado como referência do projeto do governo. Hoje, falta dinheiro e falta gestão eficiente. Sem dinheiro e sem eficiência, duas obviedades, não se constrói um sistema decente. Mas, para investir mais dinheiro no SUS, é preciso tocar também em questões sensíveis, como o financiamento da saúde privada. Falta dinheiro no SUS também – mas não só – porque o Estado tem subsidiado a saúde dos mais ricos via renúncia fiscal.

Um recente estudo do Ipea (leia aqui) mostrou que, em 2011, último ano avaliado, quase R$16 bilhões deixaram de ser arrecadados pelo governo, por dedução no imposto de renda de pessoas físicas e jurídicas e desoneração fiscal da indústria farmacêutica e de hospitais filantrópicos. O que é, de fato, renúncia fiscal? Um pagamento feito pelo Estado: ele não desembolsa, mas paga, ao deixar de receber. Assim, quase R$16 bilhões, o equivalente a 22,5% do gasto público federal em saúde, deixaram de ser investidos no SUS para serem transferidos para o setor privado, numa espécie de distribuição de renda para o topo da pirâmide. Para ter uma ideia do impacto, é mais do que os R$13 bilhões que o ministro da Saúde, Alexandre Padilha, afirma que o governo está investindo em unidades básicas de saúde, pronto-atendimento e hospitais. Não é à toa que, entre 2003 e 2011, o faturamento do mercado dos planos de saúde quase dobrou e o lucro líquido cresceu mais de duas vezes e meia acima da inflação.

O governo tem estimulado a população – e também os empregadores – a investir em saúde privada. Um plano de saúde privado tornou-se uma marca de ascensão social. A “classe C” ou “nova classe média” tem sido vítima de planos de saúde mequetrefes que, na hora de maior necessidade, deixam as pessoas desprotegidas. Como muitos já sentiram na pele, quando a coisa realmente aperta, quando a doença é séria e requer recursos e intervenções de ponta, quem vai resolver não é a rede privada, mas o SUS, porque uma parte significativa dos planos não cobre os exames e tratamentos mais caros.

Para que a solução seja estrutural – e não cosmética – é preciso acabar com as distorções e fortalecer o SUS. Sem dinheiro, o SUS vai sendo sucateado e se torna o destino apenas dos mais pobres e com menos instrumentos para reivindicar seus direitos. Assustada com a precarização do SUS, a classe média se sacrifica para pagar um plano privado, que tem sempre muitas letras miúdas. Os trabalhadores organizados incluem saúde privada na pauta sindical, afastando-se da luta do SUS. Quem tem mais poder de pressão para pressionar o Estado por saúde pública de qualidade, portanto, encontra saídas individuais – que muitas vezes vão se mostrar pífias na hora da urgência – ou saídas coletivas, mas para grupos específicos, no caso dos empregados com planos empresariais.

Enquanto sobrar distorções e faltar dinheiro, o SUS não vai melhorar. Não vai mesmo. Neste sentido, tem razão quem afirma que o Programa Mais Médicos é demagogia. Mas apenas em parte.

Acrescentar dois anos ao curso de medicina e tornar esses dois últimos anos um trabalho remunerado no SUS, uma das mudanças previstas para iniciar em 2015, pode ser um aprendizado. E rico. Não só da prática médica como da realidade do país e da sua população, o que não pode fazer mal a alguém que pretenda ser um bom médico. Para que isso funcione, tanto como formação quanto como atendimento de qualidade à população, é preciso que exista de fato a supervisão dos professores e das faculdades. E essa é uma boa causa para as entidades corporativas e para as escolas de medicina.

Hoje, um dos problemas do SUS é a fragilidade da atenção básica: o que poderia ser resolvido nos postos de saúde ou pelo médico de família e que consiste em cerca de 90% dos casos acaba indo sobrecarregar os hospitais, que deveriam ser acionados apenas para os casos mais graves. A distorção provoca problemas de atendimento de uma ponta a outra do sistema. Por outro lado, entre os avanços mais significativos do SUS está o Programa Saúde da Família (PSF), um dos principais responsáveis, junto com o Bolsa Família, pela redução da mortalidade infantil no país. Mas faltam médicos para esse programa. A atuação dos estudantes de medicina poderá fazer uma enorme diferença. E isso não é pouco num país em que os filhos dos pobres ainda morrem de diarreia e de doenças já erradicadas nos países desenvolvidos.

A obrigatoriedade de trabalhar dois anos no SUS tem sido considerada por alguns setores, como as entidades corporativas, uma violação dos direitos individuais do estudante de medicina. Será que não poderia ser vista, além de um aprendizado, também como uma contrapartida, especialmente para quem estudou em universidades públicas ou foi beneficiado com bolsas do Prouni? O Estado, o que equivale a dizer toda a população brasileira, incluindo os que hoje não têm acesso à saúde pela precariedade do SUS, financia os estudos desses estudantes. Não seria lógico e mesmo ético que, ao final do curso, os estudantes devolvessem uma mínima parte desse investimento à sociedade? Para os estudantes das escolas privadas, o projeto prevê a liberação do pagamento das mensalidades nestes dois últimos anos. Mas sempre vale a pena lembrar que também há financiamento público das particulares, na forma de uma série de mecanismos, como renúncia fiscal para as filantrópicas e para as que aderiram ao Prouni.

Os estudantes de medicina serão remunerados pelo trabalho e pelo aprendizado. O valor mensal da bolsa ainda não está definido, mas a imprensa divulgou que será algo entre R$3 mil e R$8 mil. Ainda que seja o menor valor, que outra categoria no Brasil pode sonhar em ganhar isso antes mesmo de se formar? E mesmo depois de formado? Por que, então, uma resistência tão grande?

Por causa do abismo. A maioria dos estudantes de medicina vem das classes mais abastadas, como mostrou a Folha de S. Paulo de 13/7: na Unesp (Universidade Estadual Paulista), apenas 2% cursaram colégio público, contra 40% no geral; na USP (Universidade de São Paulo), 20% dos estudantes têm renda familiar superior a R$20 mil, não há negros na turma que ingressou em 2013. Historicamente, a elite brasileira não se vê como parte da construção de um país mais igualitário. Pelos motivos óbvios – e porque está acostumada a receber, não a dar. Assim, ter seus estudos financiados pelo conjunto da população brasileira é interpretado como parte dos seus direitos – não como algo que pressupõe também um dever ou uma contrapartida. Dever e contrapartida, como se sabe, são para os outros.

Não fosse esse olhar sobre si e sobre seu lugar no país, seria plausível que trabalhar os dois últimos anos do curso no SUS pudesse ser uma boa notícia para quem escolheu ser médico. Fosse até desejável. Primeiro, porque está ajudando a levar saúde a uma população que não tem. E, neste sentido, pode fazer a diferença, algumas vezes entre viver e morrer. Segundo, por participar da construção de um país mais justo, o que implica deveres ainda maiores a quem recebeu mais. Receber mais – melhores escolas, melhor saúde, melhores oportunidades – não significa que tenha de continuar recebendo mais, mas que precisa dar mais, já que a responsabilidade com quem recebeu menos se torna ainda maior. Terceiro, porque é inestimável a oportunidade de conhecer as dores, as necessidades e as aspirações das porções mais carentes do Brasil, não só pelo aprendizado médico em si, mas pelo que essa população pode ensinar sobre um outro viver.

Tornar-se médico – e não apenas um técnico em medicina – não passa pela capacidade de escutar o outro como alguém que tem algo a dizer não apenas sobre seus sintomas, mas sobre uma visão de mundo singular e uma interpretação complexa da vida?

Ao ler a maioria das críticas sobre o programa, o que chama a atenção é a impossibilidade de seus autores se verem como parte da construção de um SUS mais forte e eficiente, o que significa ser parte da construção de um Brasil melhor para todos – e não só para uma minoria. No geral, o que se revela nitidamente é um olhar de fora, como se tudo tivesse que estar pronto, em perfeitas condições, para que só então o médico atuasse. Mas é no embate cotidiano, no reconhecimento das carências e na pressão por mudanças que o SUS será fortalecido, como tem mostrado em sua prática uma parcela dos médicos tachada – às vezes pejorativamente – como idealista. Nesse sentido, também os estudantes de medicina e seus professores farão uma enorme diferença ao estar no palco onde esse embate é travado. Ao estar presentes – promovendo saúde, denunciando distorções e pressionando por qualidade – mais do que hoje.

Acredito que a vida da maioria só muda quando os Brasis se aproximam e se misturam. Tenho esperança de que esse programa – se bem executado, o que só pode acontecer com a adesão e o compromisso de todos os envolvidos – possa ser inscrito nesse gesto. 

O conjunto de medidas do “Mais médicos”, que inclui também a atuação de profissionais estrangeiros em áreas carentes, já promoveu pelo menos um impacto positivo: colocou o SUS no centro da pauta nacional. Seria tão importante que os protagonistas desse debate superassem a polarização inicial entre governo e entidades médicas para fazer uma discussão séria, com a participação da população, que pudesse resultar no acesso real da maioria a um sistema de saúde com qualidade. E seria uma pena que essa oportunidade fosse perdida por interesses imediatos e menos nobres, tanto de um lado quanto de outro.

É grande o debate sobre se faltam profissionais ou se eles estão mal distribuídos. O que me parece é que não faltam doutores no Brasil – o que falta são médicos. São muitos os doutores que ainda nem sequer se formaram, mas já assumiram o título e o encarnam num sentido profundo. O SUS terá mais chance quando existirem menos doutores e mais médicos trilhando o mapa do Brasil.