O dito e o feito na guerrilha semântica

Com tal furor a idiotice campeia que as pessoas são mais afetadas pelas palavras do que pelas atitudes



Vaia a Dilma foi para o ar na GLOBO NEWS.



A presidenta da República, Dilma Vana Rousseff Linhares, teve de penitenciar-se diante de uma baita vaia por ter se referido a “portadores de deficiência” e não a “pessoas com deficiências”. Ela tinha ido prestigiar um evento em que anunciou algumas providências do interesse da platéia. Mas “cometeu o crime” semântico de desconhecer a versão mais moderna atribuída ao segmento. E pagou caro por isso.

Não sei se você viu essa vaia como eu vi. No caso, não estou nem aí para considerar a descortesia inoportuna só porque alvejou a autoridade máxima desta República avacalhada. Vaia faz parte dos direitos democráticos dos cidadãos numa sociedade que não teria peito de produzi-la no tempo dos generais usurpadores, quando vigorava a doutrina e a lei do “prende e arrebenta”.

Mas eu acho essa uma deprimente expressão de idiotice coletiva, banalização da aparência verbal e superposição da forma sobre o conteúdo. É como se para as pessoas a embalagem pesasse mais do que o produto, como se tudo o que se quer é compensar-se com a conotação das palavras, secundarizando-se as ações, os fatos e as atitudes.

Ter ali, naquele evento de tantas expectativas  a presidenta da República, ter ali alguém que pode ser determinante no posicionamento favorável a tantos anseios historicamente construídos é menos importante do que ouvir dessa autoridade uma verbalização diferente do que a nova linguagem politicamente correta estabeleceu.

Exacerba-se, assim, um tipo de conflito de superfície, como se tudo se resolvesse com a simples pronúncia da referência conforme o que agora se cataloga.

Essa não é uma fobia exclusiva das pessoas com deficiência. Hoje, somos obrigados a ter mais cuidado com o que falamos do que com o que fazemos. Porque se não tivermos esse cuidado poderemos até ser punidos por crime hediondo e ganharmos as páginas da mídia a cata de assuntos despropositados para sorver seu empório.

Você tem que ter cuidado redobrado na verbalização de sentimentos em relação aos negros. Até chamar carinhosamente de negão pode pegar mal. Tenho visto gente em apuros porque chamou negro de negro, porque usou a palavra negro descuidadamente.

É até irônico. Você pode se referir a alguém como um miserável, um pobre qualquer. Pode dizer: você é um merda filho da puta.  Um pobre canalha. Mas será devidamente enquadrado como racista e ir direto para o xilindró se chamar o outro de negro filho da puta.

Porque, incrivelmente, a palavra negro não é vista apenas como uma despretensiosa vocalização de uma raça ou da cor de uma pessoa. A ser politicamente corretos temos de riscar a palavra negro do nosso vocabulário e arranjar um jeito de usar “afro-descendente” para evitar qualquer tipo de ofensiva criminalizável.

O arcabouço racista que seleciona acessos a algumas atividades profissionais e pesa na sua remuneração a menor permanece intocável. Você poderá conservar essa forma real e danosa de discriminação, desde que o faça com habilidade e atualize sua linguagem.

Tudo o que gera reação é a palavra usada e não a ação observada. O cavalo de batalha passou a ser circunscrito ao campo da semântica, tornando anátemas denominações que possam ser entendidas como expressões de traumático racismo.

 Neste momento, já se abre um novo elemento de conflito, o que pode caracterizar homofobia. Todo cuidado é pouco e não se deve chamar um homossexual de veado ou sapatão, sob pena de ser mal interpretado. Nesse caso, o máximo que se permite é o uso da palavra inglesa gay, que soa menos agressiva e até afetiva.

Enquanto somos levados a supervalorizar as vocalizações, as práticas que cristalizam a pirâmide social e institucionalizam a existência de sofridas camadas “abaixo do índice de pobreza” permanecem intactas.

Nesses dias em que a idiotice campeia, enxertada galhardamente na natureza de uma sociedade sem grandes exigências, alimentada por pequenas compensações, não surpreende que as pessoas com deficiência tenham se sentido ofendidas por terem sido chamadas, ainda que numa fala solidária, de reles “portadoras de deficiência”.

A politização deformada ao gosto do sistema produz esse tipo de atrito e faz com que  tudo gire em torno do dito e não do feito.  

http://g1.globo.com/politica/noticia/2012/12/dilma-e-vaiada-ao-falar-portador-de-deficiencia-durante-conferencia.html