quinta-feira, 18 de julho de 2013

Ser doutor é mais fácil do que se tornar médico

Eliane Brum
em seu blog revista ÉPOCA, publicado em 17.7.2013
Jornalista, escritora e documentarista.

elianebrum@uol.com.br / @brumelianebrum



O Programa Mais Médicos, lançado pela presidente Dilma Rousseff, não vai resolver o problema do Sistema Único de Saúde (SUS). Mas pode, sim, ser parte da solução. Ou alguém realmente acredita que colocar mais médicos nos lugares carentes do Brasil pode fazer mal para a população? 

Sério que, de boa-fé, alguém acredita nisso? A veemência dos protestos contra o projeto de ampliar o curso de medicina de seis para oito anos e tornar esses dois últimos anos um trabalho remunerado para o SUS revela muito. Especialmente o quanto é abissal a fratura social no Brasil. E o quanto a parte mais rica é cega para a possibilidade de fazer a sua parte para diminuir uma desigualdade que deveria nos envergonhar todos os dias – e que, no caso da saúde, mata os mais frágeis e os mais pobres.

Para resolver o problema do SUS é preciso assumir, de fato, o compromisso com a saúde pública gratuita e universal. O que significa investir muito mais recursos. Em 2011, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil gastou US$477,00 per capita em saúde. Menos do que vizinhos como Uruguai (US$817,80) e Argentina (US$869,40), por exemplo. E quase seis vezes menos do que o Reino Unido (US$2.747,00), cujo sistema de saúde tem sido apresentado como referência do projeto do governo. Hoje, falta dinheiro e falta gestão eficiente. Sem dinheiro e sem eficiência, duas obviedades, não se constrói um sistema decente. Mas, para investir mais dinheiro no SUS, é preciso tocar também em questões sensíveis, como o financiamento da saúde privada. Falta dinheiro no SUS também – mas não só – porque o Estado tem subsidiado a saúde dos mais ricos via renúncia fiscal.

Um recente estudo do Ipea (leia aqui) mostrou que, em 2011, último ano avaliado, quase R$16 bilhões deixaram de ser arrecadados pelo governo, por dedução no imposto de renda de pessoas físicas e jurídicas e desoneração fiscal da indústria farmacêutica e de hospitais filantrópicos. O que é, de fato, renúncia fiscal? Um pagamento feito pelo Estado: ele não desembolsa, mas paga, ao deixar de receber. Assim, quase R$16 bilhões, o equivalente a 22,5% do gasto público federal em saúde, deixaram de ser investidos no SUS para serem transferidos para o setor privado, numa espécie de distribuição de renda para o topo da pirâmide. Para ter uma ideia do impacto, é mais do que os R$13 bilhões que o ministro da Saúde, Alexandre Padilha, afirma que o governo está investindo em unidades básicas de saúde, pronto-atendimento e hospitais. Não é à toa que, entre 2003 e 2011, o faturamento do mercado dos planos de saúde quase dobrou e o lucro líquido cresceu mais de duas vezes e meia acima da inflação.

O governo tem estimulado a população – e também os empregadores – a investir em saúde privada. Um plano de saúde privado tornou-se uma marca de ascensão social. A “classe C” ou “nova classe média” tem sido vítima de planos de saúde mequetrefes que, na hora de maior necessidade, deixam as pessoas desprotegidas. Como muitos já sentiram na pele, quando a coisa realmente aperta, quando a doença é séria e requer recursos e intervenções de ponta, quem vai resolver não é a rede privada, mas o SUS, porque uma parte significativa dos planos não cobre os exames e tratamentos mais caros.

Para que a solução seja estrutural – e não cosmética – é preciso acabar com as distorções e fortalecer o SUS. Sem dinheiro, o SUS vai sendo sucateado e se torna o destino apenas dos mais pobres e com menos instrumentos para reivindicar seus direitos. Assustada com a precarização do SUS, a classe média se sacrifica para pagar um plano privado, que tem sempre muitas letras miúdas. Os trabalhadores organizados incluem saúde privada na pauta sindical, afastando-se da luta do SUS. Quem tem mais poder de pressão para pressionar o Estado por saúde pública de qualidade, portanto, encontra saídas individuais – que muitas vezes vão se mostrar pífias na hora da urgência – ou saídas coletivas, mas para grupos específicos, no caso dos empregados com planos empresariais.

Enquanto sobrar distorções e faltar dinheiro, o SUS não vai melhorar. Não vai mesmo. Neste sentido, tem razão quem afirma que o Programa Mais Médicos é demagogia. Mas apenas em parte.

Acrescentar dois anos ao curso de medicina e tornar esses dois últimos anos um trabalho remunerado no SUS, uma das mudanças previstas para iniciar em 2015, pode ser um aprendizado. E rico. Não só da prática médica como da realidade do país e da sua população, o que não pode fazer mal a alguém que pretenda ser um bom médico. Para que isso funcione, tanto como formação quanto como atendimento de qualidade à população, é preciso que exista de fato a supervisão dos professores e das faculdades. E essa é uma boa causa para as entidades corporativas e para as escolas de medicina.

Hoje, um dos problemas do SUS é a fragilidade da atenção básica: o que poderia ser resolvido nos postos de saúde ou pelo médico de família e que consiste em cerca de 90% dos casos acaba indo sobrecarregar os hospitais, que deveriam ser acionados apenas para os casos mais graves. A distorção provoca problemas de atendimento de uma ponta a outra do sistema. Por outro lado, entre os avanços mais significativos do SUS está o Programa Saúde da Família (PSF), um dos principais responsáveis, junto com o Bolsa Família, pela redução da mortalidade infantil no país. Mas faltam médicos para esse programa. A atuação dos estudantes de medicina poderá fazer uma enorme diferença. E isso não é pouco num país em que os filhos dos pobres ainda morrem de diarreia e de doenças já erradicadas nos países desenvolvidos.

A obrigatoriedade de trabalhar dois anos no SUS tem sido considerada por alguns setores, como as entidades corporativas, uma violação dos direitos individuais do estudante de medicina. Será que não poderia ser vista, além de um aprendizado, também como uma contrapartida, especialmente para quem estudou em universidades públicas ou foi beneficiado com bolsas do Prouni? O Estado, o que equivale a dizer toda a população brasileira, incluindo os que hoje não têm acesso à saúde pela precariedade do SUS, financia os estudos desses estudantes. Não seria lógico e mesmo ético que, ao final do curso, os estudantes devolvessem uma mínima parte desse investimento à sociedade? Para os estudantes das escolas privadas, o projeto prevê a liberação do pagamento das mensalidades nestes dois últimos anos. Mas sempre vale a pena lembrar que também há financiamento público das particulares, na forma de uma série de mecanismos, como renúncia fiscal para as filantrópicas e para as que aderiram ao Prouni.

Os estudantes de medicina serão remunerados pelo trabalho e pelo aprendizado. O valor mensal da bolsa ainda não está definido, mas a imprensa divulgou que será algo entre R$3 mil e R$8 mil. Ainda que seja o menor valor, que outra categoria no Brasil pode sonhar em ganhar isso antes mesmo de se formar? E mesmo depois de formado? Por que, então, uma resistência tão grande?

Por causa do abismo. A maioria dos estudantes de medicina vem das classes mais abastadas, como mostrou a Folha de S. Paulo de 13/7: na Unesp (Universidade Estadual Paulista), apenas 2% cursaram colégio público, contra 40% no geral; na USP (Universidade de São Paulo), 20% dos estudantes têm renda familiar superior a R$20 mil, não há negros na turma que ingressou em 2013. Historicamente, a elite brasileira não se vê como parte da construção de um país mais igualitário. Pelos motivos óbvios – e porque está acostumada a receber, não a dar. Assim, ter seus estudos financiados pelo conjunto da população brasileira é interpretado como parte dos seus direitos – não como algo que pressupõe também um dever ou uma contrapartida. Dever e contrapartida, como se sabe, são para os outros.

Não fosse esse olhar sobre si e sobre seu lugar no país, seria plausível que trabalhar os dois últimos anos do curso no SUS pudesse ser uma boa notícia para quem escolheu ser médico. Fosse até desejável. Primeiro, porque está ajudando a levar saúde a uma população que não tem. E, neste sentido, pode fazer a diferença, algumas vezes entre viver e morrer. Segundo, por participar da construção de um país mais justo, o que implica deveres ainda maiores a quem recebeu mais. Receber mais – melhores escolas, melhor saúde, melhores oportunidades – não significa que tenha de continuar recebendo mais, mas que precisa dar mais, já que a responsabilidade com quem recebeu menos se torna ainda maior. Terceiro, porque é inestimável a oportunidade de conhecer as dores, as necessidades e as aspirações das porções mais carentes do Brasil, não só pelo aprendizado médico em si, mas pelo que essa população pode ensinar sobre um outro viver.

Tornar-se médico – e não apenas um técnico em medicina – não passa pela capacidade de escutar o outro como alguém que tem algo a dizer não apenas sobre seus sintomas, mas sobre uma visão de mundo singular e uma interpretação complexa da vida?

Ao ler a maioria das críticas sobre o programa, o que chama a atenção é a impossibilidade de seus autores se verem como parte da construção de um SUS mais forte e eficiente, o que significa ser parte da construção de um Brasil melhor para todos – e não só para uma minoria. No geral, o que se revela nitidamente é um olhar de fora, como se tudo tivesse que estar pronto, em perfeitas condições, para que só então o médico atuasse. Mas é no embate cotidiano, no reconhecimento das carências e na pressão por mudanças que o SUS será fortalecido, como tem mostrado em sua prática uma parcela dos médicos tachada – às vezes pejorativamente – como idealista. Nesse sentido, também os estudantes de medicina e seus professores farão uma enorme diferença ao estar no palco onde esse embate é travado. Ao estar presentes – promovendo saúde, denunciando distorções e pressionando por qualidade – mais do que hoje.

Acredito que a vida da maioria só muda quando os Brasis se aproximam e se misturam. Tenho esperança de que esse programa – se bem executado, o que só pode acontecer com a adesão e o compromisso de todos os envolvidos – possa ser inscrito nesse gesto. 

O conjunto de medidas do “Mais médicos”, que inclui também a atuação de profissionais estrangeiros em áreas carentes, já promoveu pelo menos um impacto positivo: colocou o SUS no centro da pauta nacional. Seria tão importante que os protagonistas desse debate superassem a polarização inicial entre governo e entidades médicas para fazer uma discussão séria, com a participação da população, que pudesse resultar no acesso real da maioria a um sistema de saúde com qualidade. E seria uma pena que essa oportunidade fosse perdida por interesses imediatos e menos nobres, tanto de um lado quanto de outro.

É grande o debate sobre se faltam profissionais ou se eles estão mal distribuídos. O que me parece é que não faltam doutores no Brasil – o que falta são médicos. São muitos os doutores que ainda nem sequer se formaram, mas já assumiram o título e o encarnam num sentido profundo. O SUS terá mais chance quando existirem menos doutores e mais médicos trilhando o mapa do Brasil.

10 comentários:

Anônimo disse...

Só tenho a agradecer esta soberba análise sobre a problemática dos médicos e do SUS em nosso País.
Parabéns.
Claudio Ribeiro - C. Abreu, RJ.

ELISA BRUM disse...

PERFEITA A ANÁLISE DE MINHA "PARENTE?" ELIANE BRUM. O PONTO QUE MAIS DESTACO É O DA CONTRAPARTIDA DOS DOIS ANOS TRABALHANDO NO SUS, PRINCIPALMENTE PARA OS QUE CURSARAM FACULDADES PÚBLICAS OU TIVERAM SEUS ESTUDOS FINANCIADOS PELO GOVERNO. NO CASO DE BOLSAS DE ESTUDO NO EXTERIOR, POR EX, JÁ SE EXIGE ESTA CONTRAPARTIDA DE DOIS ANOS TRABALHANDO DE VOLTA NO BRASIL. NADA MAIS JUSTO. AGORA, MUDAR A CABEÇA DE ESTUDANTES "MAURICINHOS" EXIGE UM PROCESSO DE CONSCIENTIZAÇÃO POLÍTICA QUE DEVERIA VIR DESDE OS TEMPOS DA ESCOLA. KD A "MORAL E CÍVICA", KD O HINO NACIONAL, KD O ORGULHO DE TRABALHAR PELO BEM DO BRASIL? SERÁ QUE SÓ CONSEGUIMOS LEMBRAR DISTO QUANDO DISPUTAMOS O FUTEBOL?

Anônimo disse...

joe new balance outlet
nike basketball shoes
canada goose sale
juicy couture handbags
ugg boots uk
mbt shoes clearance
nike shoes sale
michael kors handbags
uggs for cheap
gucci handbags
fake ray ban
ugg outlet
ugg boots cheap
isabel marant sneakers
cheap ugg boots
patagonia outlet
cheap ugg boots
balenciaga handbags
nike heels
coach handbags
miu miu handbags
michael kors handbags
kd vi
louboutin outlet
lebron james shoes
mac makeup
uggs for sale
nike roshe run
kevin durant shoes
michael kors outlet handbags
replica ray bans
burberry handbags
canada goose jacket
mbt shoes sale

Unknown disse...

Qifan0713
north face jackets
true religion sale
nike air max uk
nike trainers,nike trainers uk,cheap nike trainers,nike shoes uk,cheap nike shoes uk
the north face uk
lebron shoes
robert griffin jersey,joe theismann jersey,andre roberts jersey,sonny jurgensen jersey,art monk jersey,bashaud breeland jersey,barry cofield jersey,perry riley jersey,e.j. biggers jersey,duke ihenacho jersey,josh morgan jersey
air jordan shoes
mulberry uk
coach outlet store
canada goose sale
real madrid football shirts
soccer shoes
toms shoes
saints jerseys
barcelona soccer jersey
chicago blackhawks jersey
kobe 9
miami dolphins jerseys
ralph lauren,ralph lauren uk,ralph lauren outlet,ralph lauren outlet online,polo ralph lauren outlet,ralph lauren polo
nike free 5.0
juicy couture outlet
oakley sunglasses
lebron 12 shoes
rolex watches uk
the north face jackets
ugg boots
arthur jones jersey,deonte thompson jersey,courtney upshaw jersey,timmy jernigan jersey,jeromy miles jersey,haloti ngata jersey,joe flacco jersey,steve smith sr jersey
lance briggs jersey,martellus bennett jersey,jay cutler jersey,sylvester williams jersey
juicy couture sale

Unknown disse...

nike free, mulberry, ray ban pas cher, new balance pas cher, hogan, converse pas cher, hollister, ralph lauren pas cher, coach outlet, michael kors, lacoste pas cher, true religion jeans, sac longchamp, north face, michael kors, hermes, nike trainers, true religion jeans, nike roshe, burberry, timberland, nike roshe run, nike blazer, true religion outlet, nike air max, vanessa bruno, louboutin pas cher, hollister pas cher, nike free run uk, longchamp pas cher, replica handbags, air max, lululemon, oakley pas cher, michael kors, coach outlet, ralph lauren uk, true religion jeans, nike air max, vans pas cher, tn pas cher, north face, sac guess, air jordan pas cher, coach purses, michael kors, ray ban uk, nike air max, air force, abercrombie and fitch, nike huarache

Unknown disse...

ugg boots uk, ugg,ugg australia,ugg italia, moncler, ugg,uggs,uggs canada, moncler, moncler, louis vuitton, canada goose outlet, hollister, louis vuitton, moncler, barbour, moncler, sac louis vuitton pas cher, ugg pas cher, karen millen, louis vuitton, lancel, bottes ugg, canada goose, canada goose uk, gucci, replica watches, juicy couture outlet, wedding dresses, coach outlet, montre pas cher, pandora charms, louis vuitton, converse outlet, moncler, links of london, barbour jackets, thomas sabo, toms shoes, canada goose, pandora jewelry, swarovski, pandora charms, marc jacobs, canada goose, moncler outlet, supra shoes, juicy couture outlet, doudoune canada goose, moncler, swarovski crystal, canada goose outlet, canada goose, ray ban, pandora jewelry
ninest123 16.03

Anônimo disse...

2016-3-15 xiaozhengm
kate spade handbags
coach outlet
oakley sunglasses
ghd hair straighteners
oakley sunglasses
coach factory outlet
michael kors bags
converse uk
louis vuitton pas cher
michael kors outlet online
burberry
oakley sunglasses
timberland outlet
fitflops
valentino shoes on sale
kate spade outlet
running shoes
burberry uk
under armour shoes
nike blazer
rolex watches
kate spade outlet
adidas shoes uk
mizuno running shoes
cartier love bracelet
polo ralph lauren
fitflops
true religion
louis vuitton borse
air force 1
ralph lauren uk
timberland boots
calvin klein underwear
sac longchamp
ray ban sunglasses
coach outlet
coach outlet store online
coach factory outlet
kate spade outlet online
reebok shoes
toms shoes

fangyaoting disse...

fangyanting20160913
longchamp outlet
mizuno running shoes
nike soccer shoes
michael kors uk outlet
ferragamo shoes
longchamp outlet
coach outlet
basketball shoes,basketball sneakers,lebron james shoes,sports shoes,kobe bryant shoes,kobe sneakers,nike basketball shoes,running shoes,mens sport shoes,nike shoes
air max 90
fitflops sale
ray-ban sunglasses
nike free 5
cheap uggs
cheap jordans
canada goose
canada goose outlet
air jordan shoes for sale
michael kors handbags outlet
oakley sunglasses
omega watches
north face jacket
versace sunglasses
ray ban sunglasses
fitflops uk
mont blanc pens
ugg outlet
rolex orologi
hollister sale
nike roshe run
coach outlet store

Unknown disse...

michael kors clearance
michael kors outlet
uggs on sale
ugg outlet
mulberry handbags
ray-ban sunglasses
nike free 5
nike outlet
versace sunglasses
michael kors outlet store
chanyuan0929

raybanoutlet001 disse...

ecco shoes
michael kors outlet store
nike trainers
michael kors outlet
cheap basketball shoes
cheap michael kors handbags
michael kors outlet
michael kors outlet clearance
air jordan uk
cheap nike shoes sale